Religião e Genes
Revista Super Interessante, Setembro de 2001

O biólogo Edward O. Wilson já teve um jarro de água gelada despejado sobre ele numa conferência científica e ouviu mais de uma vez estudantes da Universidade de Harvard berrarem em megafones pela sua demissão – alguns chegando até a levar matracas para fazer barulho em suas palestras. Tudo por ser considerado um dos pioneiros da sociobiologia – a idéia de que é possível compreender o comportamento humano e da sociedade por meio da biologia, tese nada popular entre os cientistas sociais que o acusam de fomentar uma nova versão de darwinismo social (uma mescla de sociologia com biologia que, no século XIX, foi usada para justificar as desigualdades sociais). "O irônico é que a maioria dos cientistas sociais que me criticam cometem os mesmos erros dos darwinistas sociais", diz Wilson. "Usam a ciência para defender as crenças de uma ideologia política." Ele diz que as novas descobertas da neurobiologia sobre a mente humana aproximarão inevitavelmente as ciências humanas das ciências naturais, uma união que ele defende em seu livro Consiliência – A Unidade do Conhecimento (Editora Campus), em que sugere que até a busca de Deus pelo homem não passa de uma herança genética dos nossos antepassados.

Super – Sugerir que até a religião humana está intimamente ligada aos nossos genes não é um excesso de determinismo genético?
Concordo que é difícil as pessoas aceitarem que a predisposição humana para a religião é uma conseqüência normal da evolução genética do cérebro. A ânsia por acreditar em alguma existência transcendental, na imortalidade, faz muito mais sucesso do que a ciência. E esse é um dilema humano: evoluimos geneticamente para aceitar uma verdade e descobrimos outra. Mas temos que ter humildade para reconhecer que nem sempre o que desejamos corresponde à verdade.

E qual seria a origem dessa inclinação para a fé em Deus?
Em primeiro lugar, precisamos concordar que não há nenhuma evidência da existência de uma vida transcendental. Já os estudos sobre o comportamento humano indicam que nossa inclinação para a religião pode ter evoluído do comportamento de submissão animal. Explico: em bandos de macacos rhesus, por exemplo, o macho dominante do grupo caminha firmemente com a cauda e a cabeça erguidas, enquanto os macacos dominados mantêm a cabeça e a cauda baixa, em sinal de respeito ao líder do bando. Estar subordinado a um líder dá a esses animais mais proteção contra os inimigos e garante a eles maior acesso aos alimentos e ao abrigo. Qualquer cientista comportamental que viesse de outro planeta estudar o homem perceberia facilmente a semelhança entre esse comportamento de submissão e a tendência humana de se submeter a um Deus.

Em seu livro Consiliência, você propõe uma fusão das ciências humanas com as ciências naturais. Acha mesmo isso possível?
Não apenas acho possível como considero essa união quase inevitável. Não é aceitável que as ciências humanas permaneçam numa espécie de ilha distante de todas as outras disciplinas, ignorando os avanços da biologia e de suas explicações sobre a natureza humana. As novas descobertas sobre o cérebro e a consciência humana serão decisivas para essa união. E estamos cada vez mais perto de decifrar o cérebro e sua relação com a mente. Quando parte desse mistério for desvendado, ninguém poderá estudar a sociedade e a cultura como antes.

No passado, a união entre as ciências humanas com a biologia foi responsável pelo darwinismo social e pelas teorias racistas. Por que essa união daria certo agora?
É preciso deixar claro que o darwinismo social e as teorias racistas não eram teorias científicas de verdade, nem tinham o objetivo de unir áreas da ciência. Essas teorias tentaram aplicar uma ideologia a um modelo científico. E esse continua sendo o principal problema das ciências humanas: estudar a sociedade com o viés de uma ideologia. E esse erro não foi apenas das teorias que serviram de base para o nazismo. Os regimes totalitários de esquerda também usaram a ciência para legitimar uma idéia de homem e da sociedade ideal. Ou seja: tão pernicioso quanto as teorias do determinismo biológico para justificar as desigualdades sociais foi a adoção do marxismo-leninismo pelos cientistas sociais. A verdadeira ciência não pode ser vinculada aos interesses de nenhuma ideologia política. Isso é a morte da ciência, em qualquer área.

Mas se os genes nos programaram para diversos traços do nosso comportamento, alguém não poderia usar essa tese para justificar uma ideologia?
Poderia. Mas não faria nenhum sentido do ponto de vista científico. A constatação de que, em interação com o ambiente, nossos genes têm um papel fundamental na natureza humana não significa que certo comportamento seja necessariamente bom ou ruim. Você não pode atribuir valor a um traço genético apenas pelo fato de que ele é genético. Seria o mesmo que argumentar que um comportamento é mais ético que outro só porque ele está mais próximo da natureza. Seguindo essa premissa, alguém poderia justificar atrocidades dizendo que a violência está em nossos genes. É claro que a violência faz parte dos homens. Mas a capacidade de escolher também é um dos mais importantes traços humanos.

Poderemos, no futuro, eliminar alguns traços indesejáveis do homem – da mesma forma como erradicaremos algumas doenças genéticas?
Isso será possível e não tenho dúvidas de que, nesse momento, a humanidade terá que fazer sua escolha ética mais importante: devemos continuar vivendo da forma como os nossos genes nos montaram, ou devemos eliminar traços indesejáveis como a agressividade? Eu tenho uma posição firme sobre o assunto: acredito que a natureza humana deve ser preservada. Afinal, uma aparente imperfeição como a inclinação para a violência de um adolescente pode ser a mesma fonte do espírito que leva os exploradores a escalarem montanhas. São faces da mesma moeda. Se não tivermos cuidado, poderemos transformar os seres humanos em animais apáticos, uma espécie de autômato domesticável.

Quando você começou a defender a biodiversidade, essa palavra fazia parte apenas do jargão dos biólogos. Como você avalia as políticas ambientais do Brasil e de outros países?
A maioria dos países, incluindo o Brasil, ainda não se conscientizaram da riqueza que possuem. A verdadeira nova economia não será baseada em computadores, mas no uso das informações que as diversas espécies de vida no planeta carregam dentro de si. Mesmo depois da Eco-92, os economistas continuam fazendo recomendações como se o meio ambiente simplesmente não existisse. Acho que precisamos com urgência incluir o mundo natural e o bem-estar humano entre os indicadores de riqueza dos países. Com esses novos critérios de classificação, o destaque do Brasil seria ainda maior. Pelo menos enquanto conseguir preservar suas reservas de florestas tropicais .

 

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