Os genes de Romeu e Julieta
MOACYR SCLIAR

Folha de São Paulo, domingo, 26 de março de 2006

+ cultura

Interpretação atual do evolucionismo destaca a influência do biológico nos fenômenos sociais e literários

Os genes de Romeu e Julieta
MOACYR SCLIAR
COLUNISTA DA FOLHA


A trajetória do evolucionismo mostra como é difícil rotular, do ponto de vista político ou ideológico, idéias que nascem da ciência, da cultura ou da arte. Certamente não era em rótulos que Charles Darwin pensava quando escreveu "A Origem das Espécies". Mas uma teoria tão revolucionária inevitavelmente teria seu papel no choque de conceitos que emergia com toda sua força no século 19, o século que marcou a ascensão do capitalismo e também dos movimentos sociais que a ele se opunham. Esquerda e direita eram então categorias estanques, como o eram progressista e reacionário.

E o evolucionismo? Era de esquerda ou era de direita? Era progressista ou era reacionário?

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A relação entre homens e mulheres já não é só vista como algo romântico
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Aparentemente a teoria de Darwin colocava-o como um pensador progressista, um esquerdista até. Afinal de contas, ele se opunha às concepções religiosas, e a religião era então o ópio do povo, segundo a expressão de Marx, aliás seu contemporâneo e admirador. "É notável como Darwin reconhece, nos seres naturais, as características da sociedade inglesa, com a divisão de trabalho, a competição, a luta pela sobrevivência", escreveu um entusiasmado Marx, que quis até dedicar o segundo tomo de "O Capital" ao naturalista. Este recusou a oferta, provavelmente porque já tinha dores de cabeça demais com a religião estabelecida.

Darwinismo social

A verdade, porém, é que as idéias darwinianas não se ajustavam exatamente à causa do socialismo; afinal, incluíam a sobrevivência do mais apto, concepção compatível com a economia de mercado e com o capitalismo. Surgiu daí o darwinismo social, que, apoiado nos trabalhos do filósofo inglês Herbert Spencer e de seus seguidores, procurava justificar a desigualdade social como resultado da evolução natural.

Daí para o racismo, para a exclusão dos "inferiores", era apenas um passo, e este foi dado por meio da eugenia, corrente de filosofia social criada por sir Francis Galton (primo de Darwin, a propósito) que visava o "aperfeiçoamento da espécie", mediante aconselhamento genético e controle da natalidade, mas que acabou chegando, no caso do nazismo, à esterilização forçada e, por fim, ao genocídio.

A revelação dos crimes cometidos nos campos de concentração tornou a eugenia politicamente incorreta e, de alguma forma, afetou também o darwinismo.

Além disso, na primeira metade do século 20, o comunismo estava em plena ascensão. Ao stalinismo, as idéias de Darwin interessavam sobretudo por seu caráter "materialista", anticriacionista. Mas os teóricos comunistas queriam provar que havia um aperfeiçoamento contínuo da espécie humana (culminando com o socialismo) resultante, não da seleção natural e da sobrevivência do mais apto, e sim das condições sociais favoráveis: "nurture" seria mais importante que "nature", o social prevaleceria sobre o biológico.

Essas mudanças se transmitiriam de geração em geração, por meio da transmissão hereditária dos caracteres adquiridos, defendida pelo naturalista francês Jean-Baptiste Lamarck, um precursor de Darwin, em 1809. O regime comunista via a genética como coisa burguesa, reacionária, e criou o seu próprio guru científico, Trofim Lysenko, graças a quem a agricultura soviética simplesmente afundou.

Propagação dos genes

O darwinismo continua enfrentando a resistência de correntes religiosas, sobretudo nos EUA, onde o criacionismo ressurgiu com a teoria do "design inteligente", segundo a qual as características dos seres vivos são complexas demais para serem explicadas pela seleção natural e devem ser atribuídas a uma inteligência superior: Deus.

Mas ganhou prestígio crescente em meios intelectuais alheios à discussão esquerda-direita. Surgiu assim o evolucionismo sociocultural, que reconhece o peso dos fatores biológicos no comportamento social. A relação entre homens e mulheres já não é só vista como algo romântico ou, como querem algumas feministas, algo opressivo; não, machos e fêmeas, ansiosos pela reprodução, continuam presentes mesmo sob aparências refinadas. Exemplo: por que homens gostam de mulheres com cadeiras largas? Porque uma bacia ampla facilita o parto e, portanto, a preservação da progênie.

Propagar genes é, do ponto de vista da espécie, a grande prioridade. Daí a paixão de Romeu por Julieta, daí o ciúme de Otelo, daí o adultério de Madame Bovary: nos personagens literários refletem-se as pulsões evolutivas, garantem David P.Barash e Nanelle R.Barash em "Os Ovários de Madame Bovary" (ed. Relume-Dumará).

Não só a ficção mas até a mentira propriamente dita pode estar a serviço de injunções biológicas, sustenta David Livingston Smith em "Por Que Mentimos" (ed. Campus). São apenas dois exemplos da enorme literatura que surgiu, nos últimos anos, partindo da teoria evolucionista. Um sucesso com o qual Darwin provavelmente nunca sonhou.

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