A PSICANÁLISE NO DIVÃ
Revista SUPER INTERESSANTE, Por Rodrigo Cavalcante

Cada vez mais pessoas estão trocando o analista por medicamentos, novos
tratamentos psicológicos e terapias alternativas para aliviar o
sofrimento da mente.


Será que as idéias de Freud estão morrendo?

"Freud explica" é um dos grandes clichês do século XX. Mesmo quem nunca
leu sequer um parágrafo dos mais de 20 livros do fundador da psicanálise
já esbarrou com termos como complexo de Édipo, desejos reprimidos,
inveja do pênis, símbolos fálicos, ego, id e superego. A figura do gênio
de cabelos grisalhos, barba bem aparada, com seu sugestivo charuto e um
olhar que parece penetrar nas profundezas da alma humana faz parte do
inconsciente de nossa época. Aliás, a própria noção do inconsciente está
para Freud como a Teoria da Relatividade para Einstein ou a evolução
para Darwin. Ainda hoje, pessoas em todo o mundo se submetem ao mesmo
ritual que ele desenvolveu para tratar dos males da mente: vão a um
especialista, sentam-se num móvel acolchoado e começam a falar.

Apesar de tão popular, a psicanálise (nome que Freud deu a esse método,
em 1896), nunca foi alvo de tantas críticas como nos últimos anos.
Neurologistas e estudiosos da mente dizem que boa parte dela está mais
próxima da ficção do que da ciência e que as obras de Freud hoje não
passam de boa literatura (ele escrevia muito bem). Psicólogos sociais
acusam a ênfase dada por Freud às relações familiares e à sexualidade
como modelos limitados de interpretação do sofrimento psíquico, propondo
novos caminhos para cuidar dos problemas existenciais. Contribuindo para
esvaziar ainda mais os consultórios dos psicanalistas, milhares de
pessoas procuram alívio para o sofrimento da alma em psicoterapias
não-freudianas e até mesmo na filosofia oriental e na redescoberta da
própria espiritualidade.

"Só quem tem pouco bom senso levaria hoje a sério a maioria das idéias
de Freud", diz a psicóloga Sophie, professora da Faculdade Simmons, em
Boston, nos Estados Unidos. Sua declaração seria mais uma dentre o coro
de críticos de Freud, não fosse por um detalhe importante. O último nome
de Sophie é Freud. Isso mesmo: a neta do fundador da psicanálise disse à
Super que é bastante cética diante das teorias do avô e acha que pouca
coisa de suas teses ainda pode ser considerada.

Não é a primeira vez que Sophie faz críticas à psicanálise. Em 1995, ela
participou, junto com diversos críticos de Freud, nos Estados Unidos, de
uma manifestação contra o tom "adulatório" de uma exposição sobre seu
avô que seria inaugurada naquele ano, na Biblioteca do Congresso
Americano. Além de ser adiada para 1998, quando finalmente foi aberta, a
exposição incorporou uma "visão mais crítica de Freud" e foi um indício
de que os ataques à psicanálise não iriam parar por aí.

Poucos desses críticos deixam de reconhecer, é claro, a genialidade e o
pioneirismo do pensador austríaco. Mas isso não os impede de atingir em
cheio a psicanálise ao contestarem sua validade atual como tratamento
clínico da mente. "Não há nenhuma prova de que os seus resultados sejam
eficazes", diz a neta de Freud. "A psicanálise se tornou uma espécie de
religião." Como o tratamento pode ser prolongado por anos, exigindo
sessões semanais, ela ainda teria o inconveniente de ser uma religião
muito cara.

Afinal, vale ou não a pena pagar por anos de análise? Os psicanalistas
afirmam que sim e rebatem as críticas dizendo que elas são típicas de
uma época em que as pessoas querem resolver seus problemas existenciais
na farmácia, como se fosse possível encontrar a felicidade em cartelas
de antidepressivos, como o Prozac. O problema com as drogas é que elas
atuariam nos sintomas e não nas causas do sofrimento psíquico. Passado o
efeito do medicamento, todas as insatisfações voltariam porque seus nós
não teriam sido desatados. "Ninguém tem dúvidas de que muitas das novas
drogas podem aliviar os sintomas de diversas doenças da mente", diz
Peter Gay, psicanalista, historiador, professor emérito da Universidade
de Yale e autor da famosa biografia Freud: Uma Vida para o Nosso Tempo.
"Mas elas não podem curar ninguém. A técnica do tratamento pela fala,
criação de Freud, é e permanecerá essencial."

Talvez seja cedo para afirmar se, no futuro, Freud será mais lembrado
como o médico que inventou um tratamento revolucionário para as doenças
mentais ou como um dos 26 autores mais importantes da literatura, na
seleção que o crítico literário Harold Bloom fez em seu livro O Cânone
Ocidental.

O próprio Freud, em alguns de seus textos, aventou a possibilidade de
que um dia a psicanálise talvez fosse deixada para trás, substituída por
um novo tratamento. A única coisa certa é que, para continuar mantendo
seu grau de influência, ela terá que responder aos seus principais
concorrentes do início do século XXI.

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FREUD x NEUROCIÊNCIA
Pouca gente sabe, mas antes de criar a psicanálise o próprio Freud
passou anos de sua vida tentando entender o funcionamento da fisiologia
do cérebro e como ele poderia desencadear os distúrbios mentais,
igualzinho a qualquer neurocientista moderno. Entre 1882 e 1885, Freud
trabalhou com pacientes que sofriam de lesão cerebral no Hospital Geral
de Viena, já tendo pesquisado o sistema nervoso de lampréias e
lagostins. Então por que boa parte dos neurocientistas atuais vive
criticando suas idéias?

"Não se trata de uma crítica a Freud, trata-se de reconhecer que os
modelos da psicanálise não se encaixam com o que sabemos hoje sobre o
funcionamento do cérebro", diz o neurocientista Ivan Izquierdo, da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. "Sabe-se hoje que doenças
como a esquizofrenia, que no passado era relacionada a um trauma
psicológico, têm origem orgânica." Izquierdo diz que diversos estudos
revelam que os pacientes esquizofrênicos têm um déficit anatômico na
região do nosso cérebro que fica logo abaixo da testa, conhecida como
córtex pré-frontal. Esse déficit geraria uma falha na chamada memória de
trabalho (a memória usada para nos orientar no aqui e agora), fazendo
com que o esquizofrênico perceba a realidade como alucinação. "Para
controlar os mecanismos que disparam essas alucinações, a medicação é
fundamental", diz o neurocientista. "Utilizar o modelo freudiano para
tentar curar alguns desses distúrbios pode ser tão inútil quanto tentar
encontrar um erro num programa de computador quando a base do problema
está na máquina."

Máquina? Não seria uma simplificação comparar um homem a um computador,
traçando uma linha clara entre um hardware, formado pelo cérebro e suas
interações químicas, e um software, constituído por nossas emoções,
pensamentos e experiências de vida? Izquierdo diz que é claro que a
divisão não é tão simples e há uma série de interações entre as
predisposições orgânicas e história de vida. "Se você tem uma tendência
para a depressão, por exemplo, é óbvio que ela vai estar associada a
algumas passagens de sua vida", diz Izquierdo. "Mas a predisposição já
estava lá, enquanto outras pessoas, com experiências semelhantes, reagem
de outra forma apenas por não terem a mesma tendência." Ele diz que isso
não significa que um evento como a perda de uma pessoa querida ou um
trauma de guerra não possa causar um distúrbio numa pessoa normal. "É
claro que pode", diz Izquierdo. Mas mesmo nesses casos, conhecidos como
síndrome pós-trauma, ele diz que a psicanálise freudiana nem sempre é
útil e às vezes pode até ter efeito negativo. "Trabalhar com a memória
nesses casos pode despertar sensações terríveis que agravam o estado do
paciente", diz. "É claro que é fundamental fazer algum tratamento
psicológico, mas outras terapias não-freudianas podem ser mais
indicadas."

Apesar de reconhecer a importância do legado de Freud com a criação do
tratamento pela fala – disseminado em quase todas as terapias –,
Izquierdo diz que usar conceitos como o de complexo de Édipo para
entender a psique é quase tão gratuito como era, no tempo de Jesus,
dizer que um epilético estava possuído pelo demônio. "A psicanálise está
cheia de metáforas que podem até ser úteis para descrever algumas
condições humanas", diz Izquierdo. "Mas útil não quer dizer verdadeiro."
Então como explicar o depoimento de milhares de pessoas que atestam que
a análise freudiana mudou suas vidas para melhor?

O neurocientista Renato Sabattini, da Unicamp, diz ter a resposta para
essa pergunta: "A psicanálise funciona, sim. Mas não pela validade de
suas teorias, e sim pelo efeito placebo que a fala tem no tratamento de
distúrbios da mente". Sabattini diz que em casos de depressão e
ansiedade esse efeito pode ter resultados favoráveis de até 40%. Já em
casos em que a origem orgânica seria mais evidente, como na
esquizofrenia, os resultados seriam menores, cerca de 20%. "Não se trata
de negar o óbvio benefício que ouvir o paciente pode trazer", diz
Sabattini. "Trata-se de reconhecer que não há nenhuma base científica
que sustente a psicanálise."

Como exemplo, ele cita o papel que Freud deu aos sonhos em seu livro A
Interpretação dos Sonhos, um marco na história da psicanálise, escrito
em 1900. Para Freud, o conteúdo do sonho, por mais absurdo que possa
parecer ao senso comum, estaria repleto de desejos inconscientes que
poderiam ser identificados pela interpretação do analista. "Se você
sonhasse com alguns objetos fálicos, isso poderia significar desejos
sexuais implícitos, o que era típico da sociedade em que ele viveu", diz
Sabattini. "Hoje, se um sujeito passa muito tempo sem um contato sexual,
ele não sonha com objetos que lembram órgãos sexuais. Ele sonha com sexo
explícito." Sabattini diz que a neurociência pode mostrar apenas que o
sonho funciona como uma espécie de organizador do cérebro e diz que
animais que são privados de entrar no estado de sono REM, responsável
pelo sonho, passam a ter inúmeros problemas, como déficit de
aprendizado. "É claro que, se você procurar, pode encontrar no seu sonho
padrões e significados para o que quiser", diz Sabattini. "Da mesma
forma que você pode dar inúmeros significados a um quadro abstrato numa
exposição de arte moderna." Mas isso é ciência?

"Não", responde Adolf Grünbaum, considerado um dos mais ferrenhos
críticos da psicanálise no mundo. Professor de Psiquiatria e chefe do
departamento de Filosofia da Ciência da Universidade de Pittsburgh,
Estados Unidos, ele espinafra a validade do método inventado por Freud
em seus livros The Foundations of Psychoanalysis: A Philosophical
Critique (Os Fundamentos da Psicanálise: Uma Crítica Filosófica, inédito
no Brasil) e Validation in the Clinical Theory of Psychoanalysis
(Validade na Teoria Clínica da Psicanálise, também inédito aqui). "Está
claro que ela já está morrendo em países como a Alemanha, a Suíça e os
Estados Unidos", diz Grünbaum. "Talvez ela tenha uma sobrevida maior na
França, Itália e Argentina, mas basta observar o decrescente número de
psiquiatras que estudam para ser psicanalistas para constatar sua
decadência." Ele diz que essa tendência deve se manter graças a três
fatores. O primeiro seria a falta de evidências de que o tratamento
psicanalítico tem uma boa relação custo/benefício – para ele, há
tratamentos mais rápidos e baratos, e ninguém conseguiu provar que a
psicanálise é mais eficiente do que esses tratamentos. A segunda razão
seria a ascensão dos novos medicamentos. Aliadas a psicoterapias de
curto prazo, as novas drogas estariam tomando o lugar da psicanálise. E
o terceiro e mais controverso fator seria a falta de critérios para o
credenciamento de psicanalistas, ao menos nos Estados Unidos. "Há todo
um sistema corrompido e arbitrário, já que não existem pré-requisitos
sólidos para alguém ser considerado um psicanalista", diz o psiquiatra.

Para Grünbaum, um dos traços marcantes que comprovaria a falta de
fundamento científico da psicanálise estaria em sua quase infinita
capacidade para rebater qualquer dado que contradiga suas teorias.
Costuma-se ilustrar esse traço com a história de um analista que,
baseado nas palavras de um adolescente, interpreta que o garoto
apresenta uma clássica síndrome de Édipo: quer matar seu pai e copular
com sua mãe. Se o rapaz concordar com a interpretação, ótimo. Se a
rejeitar, sua negação é uma forte prova de que ele está reprimindo seus
impulsos. Essa estratégia é conhecida pelos detratores da psicanálise
como "cara eu ganho, coroa você perde", e teria sido usada por Freud e
seus seguidores. "Não é à toa que nas principais universidades
americanas as idéias de Freud estão saindo dos departamentos de medicina
e psicologia e sobrevivem apenas nos cursos de literatura."

Será mesmo? Pelo menos no Departamento de Neurologia da Faculdade de
Medicina da Universidade de Iowa, há um neurocientista bem mais
cauteloso em suas críticas à psicanálise. Conhecido no Brasil por seus
livros O Erro de Descartes e O Mistério da Consciência, o neurologista
António Damásio diz que, mesmo reconhecendo as limitações da
psicanálise, é preciso admitir que Freud estava correto em vários
aspectos sobre o cérebro. "O problema central da psicanálise não está em
Freud", diz Damásio. "Está num imenso número de psicanalistas que se
fecharam ao mundo exterior, apegando-se a teorias como se fossem dogmas
religiosos."

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FREUD x PSICOLOGIA SOCIAL

Não deixa de ser uma ironia, mas enquanto a neurociência critica o
método freudiano pela falta de objetividade, uma corrente da psicologia
contemporânea diz que a psicanálise não pode ajudar o homem moderno
exatamente pelo motivo oposto: ela estaria excessivamente fechada num
modelo de indivíduo do tempo de Freud, não levando em consideração que
há uma infinidade de outras causas que podem ser responsáveis pelos
distúrbios mentais.

Ou seja: uma acusação é de falta de solidez científica; a outra é de
excesso de rigidez e cientificismo na hora de lidar com o comportamento
humano. "Não adianta ficar procurando a origem do sofrimento psíquico
apenas no inconsciente, como faz a psicanálise, ou numa origem orgânica,
como fazem os neurocientistas", diz Luis Antônio Baptista, professor de
Psicologia Social da Universidade Federal Fluminense (UFF). "Há outros
fatores no mundo real, como viver numa cidade violenta ou o medo de
perder o emprego, que podem, por exemplo, levar alguém à depressão."

O que Luis Antônio e outros psicólogos sociais criticam no método
psicanalítico é a ênfase de que existe uma clara fronteira entre o
indivíduo, de um lado, e o mundo externo, do outro. Ou seja: sabe essa
idéia que você tem de que de há um universo só seu, bem separado da vida
social? Pois é. Para esses psicólogos, essa idéia de indivíduo não tem
nada de natural. "Ela é um produto de uma época e, como tal, muda de
tempo em tempo e pode até mesmo variar de cultura para cultura", diz
Silvia Carvalho, professora de psicologia social da UFF. Seria inútil,
por exemplo, tentar adaptar alguns conceitos psicanalíticos para um
membro da comunidade ianomâmi, que teria uma visão de indivíduo
completamente diferente de quem vive numa sociedade capitalista
competitiva. Da mesma forma, conceitos como o complexo de Édipo seriam
produto da sociedade vienense no tempo de Freud, e não "eventos
naturais" válidos em qualquer época.

Michel Foucault, Gilles Deleuze e Félix Guattari são os três filósofos
franceses que serviram de base para esse questionamento da psicanálise.
Em 1972, Guatarri e Deleuze escreveram juntos o livro O Anti-Édipo,
criticando as idéias de Freud e seus seguidores por sempre buscarem um
evento ou um trauma original para enquadrar o analisado numa certa
categoria. Segundo os dois filósofos franceses, essa é uma visão
extremamente reducionista do homem. O problema é: se já era complicado
para um psicanalista vasculhar o mundo interior de uma pessoa, como
lidar com o sofrimento pessoal de alguém alargando essas fronteiras para
outras fatores como a política, a economia? Parece impossível na
prática, não?

A médica e analista carioca Ana Rego Monteiro garante que é
perfeitamente viável. Ela diz que, em vez de privilegiar, como na
psicanálise, as relações familiares e a infância como uma das fontes
mais importantes para o sofrimento de alguém, o analista tem que levar
em conta que outras forças como a pressão no trabalho ou mesmo a
exigência de se enquadrar num padrão de beleza não devem ter
necessariamente um peso menor que aqueles fatores para desencadear uma
depressão. "No lugar de classificar o paciente dentro de um quadro de
doença psíquica, é preciso analisar as forças que estão atuando para
produzir esse sofrimento", diz a analista. Ela propõe, por exemplo, que
o aumento de transtornos como a síndrome de pânico estaria ligado às
mudanças econômicas, políticas e tecnológicas do mundo moderno. "É
inútil querer curar alguém apenas com medicamentos ou tentando
solucionar conflitos interiores", afirma. "É preciso entender o conjunto
de outras forças políticas que agem na mente dessa pessoa."

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FREUD x NOVA ERA

Como um bom gastroenterologista, Wilhelm Kenzler cuidava com esmero do
estômago de seus pacientes. Examinava, entubava, operava e indicava
remédios para aliviar a dor. Até que um dia, quando fazia seu doutorado
na Alemanha, na década de 1950, ele atendeu um homem com uma intrigante
dor de estômago. Depois de um exame físico detalhado, o médico não achou
absolutamente nada de anormal com o paciente – pelo menos até começar a
conversar com ele. "Ele sentou e me contou sua história de vida", diz
Kenzler. "Quando me disse que queria largar sua mulher, 15 anos mais
velha que ele, e que seu relacionamento com ela era típico de mãe e
filho, percebi qual a verdadeira origem de sua dor de estômago."

Depois disso, o médico decidiu estudar psicanálise para compreender
melhor as chamadas doenças psicossomáticas – que produzem sintomas
físicos mas têm origem na mente. "Me submeti a cinco anos de análise,
fiz o curso na Sociedade Brasileira de Psicanálise, mas cheguei à
conclusão de que o modelo freudiano era insuficiente como resposta às
minhas inquietações", diz Kenzler. Foi então que ele tomou uma decisão
cada vez mais comum entre as pessoas que procuram alternativas para o
divã: trocou Freud pela espiritualidade. "A psicanálise cuida apenas de
uma dimensão do ser humano, mas há outras dimensões que precisam ser
levadas em consideração", diz.

Você já deve ter notado que esse tipo de crítica a Freud é totalmente
diferente das feitas pelos neurocientistas ou por novas correntes da
psicologia. Não se trata de acusar a psicanálise de falta de rigor
científico ou de negligência diante do contexto social. Trata-se de
criticá-la por ignorar a existência de outros estados transcendentais da
mente que nem a teoria de Freud nem a psicologia ocidental e muito menos
a psiquiatria levam em consideração.

"Ninguém tem dúvida de que a visão de Freud sobre o funcionamento da
mente e o desenvolvimento da personalidade tiveram conseqüências
extraordinárias", disse à Super o físico austríaco e professor da
Universidade de Berkeley, na Califórnia, Fritjof Capra. Considerado um
dos mais famosos críticos da visão mecanicista da ciência ocidental, ele
diz que a psicanálise freudiana terminou se fechando para as
experiências religiosas e místicas. "Apesar de Freud ter se interessado
pela religião e pela espiritualidade durante toda a sua vida, ele chegou
a considerar a religião uma neurose da humanidade", diz o físico. "Isso
fez com que experiências dessa natureza passassem a ser enquadradas até
mesmo como sintomas de uma psicose."

A americana Suzan Andrews, monja de meditação radicada em São Paulo, diz
que essa limitação da psicanálise freudiana não existe à toa. "De
William James a Freud, a psicologia ocidental tem pouco mais de 200
anos", diz Suzan. "Já a psicologia oriental estuda esses estados mentais
há cerca de 7000 anos."

Suzan, que passou 30 anos entre a Índia e a China estudando técnicas de
meditação, diz que o método freudiano de cura pela fala não é o melhor
caminho para tratar do sofrimento da mente. "Em vez de alívio, ficar
falando de suas angústias despende ainda mais energia do corpo", diz
Suzan. "A meditação pode trazer resultados melhores que o tratamento
verbal." Mas isso, por acaso, não seria uma fuga dos problemas
existenciais que a psicanálise traria à tona?

Ela garante que não. "Não se trata de fugir dos nossos conflitos
internos", diz Suzan. "Trata-se de fortalecer a mente para que você
responda a esses conflitos com compaixão, até mesmo porque a origem
deles não está necessariamente restrita a passagens da infância."

A insistência em procurar a origem da infelicidade humana com base
apenas nessa vida é, para as correntes espiritualistas, a maior
limitação da psicanálise. Isso mesmo: para eles, boa parte do que você é
hoje em dia é produto de inúmeras reencarnações.

É nisso que acreditam, por exemplo, as milhares de pessoas que lêem e
seguem a filosofia budista do Dalai Lama, líder espiritual do povo
tibetano. (Leia a reportagem de capa da Super "A Vida Segundo o Dalai",
edição de agosto de 2001.) O psiquiatra americano Howard Cutler, que
escreveu com o Dalai Lama o best-seller A Arte da Felicidade, resume
assim a principal semelhança e a maior diferença entre o budismo e a
psicanálise: "A semelhança é que as duas filosofias acreditam que há
algo como o inconsciente que registra eventos do passado e moldam nosso
comportamento", diz Cutler. "A diferença é que, segundo o budismo, esses
registros podem ter origem em vidas passadas." Nesse caso, pouco
adiantaria ir a um analista para compreender seus problemas atuais
trabalhando com lembranças dessa vida. E talvez por isso exista cada vez
mais gente buscando a felicidade e o auto-conhecimento na sua própria
religiosidade – em detrimento do divã.

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O FUTURO DE FREUD

É bem provável que a essa altura você já esteja pensando em como vai
dizer a seu psicanalista que pretende suspender suas sessões. Mas será
que os críticos de Freud conseguirão, realmente, enterrá-lo no passado?
"Freud sobreviverá", garante o historiador Peter Gay. Quanto às críticas
de que a psicanálise não tem base científica e sempre arruma um jeito de
ter resposta para tudo, ele rebate: "Esse ataque é extremamente
simplista. Freud deixou clara sua aversão ao analista com respostas
prontas para tudo. Só um irresponsável se comportaria dessa forma." O
problema é: quem pode definir quais parâmetros um terapeuta tem que
seguir para ser chamado de psicanalista?

"Por enquanto, ninguém", diz Márcio Giovanetti, presidente da Associação
Brasileira de Psicanálise. Como a profissão não é regulamentada no
Brasil, ele diz que qualquer um pode dizer que é psicanalista – mesmo
que não tenha lido sequer um parágrafo da obra de Freud. "Esse é um dos
motivos pelos quais algumas pessoas terminam descrentes quanto à
psicanálise", diz Giovanetti. "Mas é um absurdo pôr em dúvida a validade
dos conceitos de Freud pela atuação de maus profissionais. Até porque
isso pode ocorrer em qualquer profissão."

Quanto à acusação de que Freud criou uma espécie de religião dogmática,
os psicanalistas lembram que ele fez inúmeras revisões de suas teorias
quando elas não se adequavam ao tratamento clínico. E mais: Freud teria
premeditado o papel que as drogas poderiam ter, num texto de 1938, um
ano antes de sua morte, quando escreveu que "o futuro poderá nos ensinar
a exercer uma influência direta (na mente) por meio de substâncias
químicas".

O psicanalista e professor do departamento de Psiquiatria da Unicamp,
Mário Eduardo Pereira, diz que é preciso acabar com essa idéia de que de
um lado está a psiquiatria e, do outro, a psicanálise. "Assim como
alguns psicanalistas podem ter uma devoção quase religiosa aos modelos
de Freud, há um discurso não menos religioso de que os novos
medicamentos podem resolver tudo sozinho."

A historiadora e psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco é uma das
principais críticas desse discurso da psicofarmacologia. Em seu livro
Por que a psicanálise?, ela lembra que nem os criadores desses
medicamentos acreditavam que eles seriam uma espécie de pílula mágica
para os males existenciais. O psicanalista Renato Mezan, professor da
PUC de São Paulo, concorda: "Essa questão de que existe uma oposição
entre a neurociência e a psicanálise está mal colocada" diz. "Não há
nenhuma incompatibilidade entre as duas, ao contrário: drogas como os
antidepressivos podem ajudar a criar melhores condições para que o
paciente possa ser analisado."

O historiador Peter Gay diz que, no futuro, um caminho promissor para o
estudo da mente terá até que contar com a parceria de neurologistas e
psicanalistas. "Já existem pessoas nesse momento que estão tentando
formular uma nova teoria da mente que possa congregar o trabalho dos
neurologistas com o dos psicanalistas", diz Gay. "O problema é que falta
um grande inovador como Freud para unir a produção dessas diferentes
áreas." O psiquiatra Henrique Del Nero, da USP, diz que se a psicanálise
não fizer isso ela se tornará apenas "uma forma sofisticada e cara de
buscar autoconhecimento."

Mas, afinal, as idéias de Freud morreram ou não?

Talvez tenha sido o americano John Horgan, ex-editor da revista
Scientific American e bastante conhecido pelo seu ceticismo, quem tenha
dado a resposta mais perspicaz a essa pergunta. Em seu livro A Mente
Desconhecida, ele diz que não, Freud ainda não está morto. Mas, em vez
de atribuir essa sobrevivência à validade intrínseca das teorias do
fundador da psicanálise, ele aponta uma razão mais singela para a
persistência das idéias de Freud: "Se os modelos da psicanálise são
deficientes, a neurologia também estaria longe, muito longe de desvendar
o maior mistério da ciência: a mente humana. E, para aumentar o nível de
felicidade de alguém que sofre, vale o que funcionar, seja a ciência ou
não. É isso, aparentemente, que as pessoas estão dizendo aos estudiosos.

 

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Freud Explica ou Não Explica

Inconsciente
Apesar de não ter sido o primeiro a usar esse conceito, Freud inovou ao
tratá-lo como uma espécie de depósito dos nossos desejos reprimidos
ligados à sexualidade ou à agressão que ficam atuando sobre a mente
consciente.
Ao ouvir o paciente falar livremente no divã, o psicanalista o ajuda a
compreender como a pressão do inconsciente está produzindo seus
distúrbios para que ele possa se libertar deles.
Nao:
Outras correntes, como a psicologia cognitiva, também trabalham com o
conceito do inconsciente. A diferença é que, nesse caso, o inconsciente
em princípio não poderia ser acessado pela consciência. Ele seria uma
espécie de processador paralelo inerente à mente humana – e não um
repositório de desejos reprimidos.

Sonhos
Com a publicação do seu livro A Interpretação dos Sonhos (1900), Freud
diz que o sonho é a linguagem simbólica pela qual se manifesta o
inconsciente, com todos os seus conflitos não resolvidos e desejos
reprimidos.
Nao:
A neurociência vê o sonho como um mecanismo auto-regulador do nosso
cérebro. Ele faria a digestão dos acontecimentos do dia organizando
quais informações devem ser guardadas nos arquivos da memória de longa
duração e apagando as que não foram usadas.

Infância e sexualidade
Freud acredita que a mente adulta vai sendo moldada na infância, de
acordo com as experiências de prazer e desprazer que ela vivencia em
cada fase do desenvolvimento da libido – libido, para Freud, é a energia
corporal expressa pelos instintos sexuais. Ela já estaria presente no
bebê, por exemplo, ao se relacionar com seus pais. Se o bebê for menino,
ele deseja ter a mãe para si e enxerga o pai como um rival que reprime
seu desejo (complexo de Édipo). Já a menina desejaria o pai – mas também
reprime essa vontade por temer perder o amor de sua mãe por isso. Mesmo
permanecendo ocultos no inconsciente, esses desejos poderiam gerar
distúrbios na mente do adulto.
Nao:
Ainda que reconheçam o pioneirismo de Freud em descobrir que a criança
também sente prazer sexual (não expressa ainda pelos órgãos genitais),
seus opositores dizem que ele exagera na atenção que dá às relações da
criança com seus pais como determinantes para definir o equilíbrio da
vida mental do adulto.
Para esses críticos, essa abordagem seria válida apenas no conceito da
família da sociedade vienense em que Freud viveu.

Id, superego e ego
Para Freud, a personalidade está dividida em três partes. A primeira
delas, o id, seria a mais profunda da psique humana. Lá estariam
depositados os impulsos instintivos dominados pelo desejo de prazer. Ou
seja: é o lado animal do homem, quase todo insconsciente.
Já o superego seria uma espécie de polícia interna. É aquela voz que
parece ser o senhor da razão, julgando nossos atos e, na maioria das
vezes, censurando-nos. No meio do conflito entre os desejos do id e a
censura do superego, estaria o ego.
O ego é a parte da personalidade que está em contato direto com a
realidade externa.
Criado a partir do id, tem a função de garantir a saúde, a segurança e a
sanidade da pessoa.
Nao:
Alguns críticos dizem que esse modelo de Freud não tem nenhuma
contrapartida com a neurociência – mas a neurociência tampouco parece
ter algum modelo completo do funcionamento da mente. Enquanto psicólogos
sociais consideram essa divisão reducionista, os espiritualistas dizem
que a mente não está dividida apenas em três partes. Haveria outras
forças, transcendentais, atuando sobre ela.

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PARA SABER MAIS
NA LIVRARIA

Por que a Psicanálise?
Elisabeth Roudinesco, Jorge Zahar Editor, 1994

Freud – Uma Vida para o Nosso Tempo
Peter Gay, Companhia das Letras, 1990

A Mente Desconhecida
John Horgan, Companhia das Letras, 2002

Freud
Sigmund Freud, Abril Cultural, 1978

Folha Explica Freud
Luiz Tenório Oliveira Lima, Publifolha, 2001
O Ponto de Mutação
Fritjof Capra, Cultrix, 2000

A Arte da Felicidade
Dalai Lama e Howard Cutler, Martins Fontes, 2002

The Freud Encyclopedia
Edward Erwin, Routledge, 2002

Tempo de Muda
Renato Mezan, Companhia das Letras, 1998

Dicionário de Psicanálise
Elisabeth Roudinesco, Jorge Zahar Editor, 1998

Copyright © Abril S.A. Superinteressante - outubro 2002
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