Etologia
Por: César Ades, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo


Um naturalista curioso


Em 1951, o zoólogo holandês Nikolaas Tinbergen (1907-1988) publicava a versão definitiva de O estudo do instinto – livro em que consumou suas idéias sobre o comportamento animal e sua relação com o ambiente. Resultado das aulas ministradas na Universidade de Colúmbia e no Museu Americano de História Natural (Estados Unidos), a obra apresentava de forma abrangente os princípios da etologia, área de estudos que criou junto com o zoólogo austríaco Konrad Lorenz. Passados 50 anos da publicação, vale a pena rever sua mensagem e avaliar seu impacto no desenvolvimento da área.

Em um dia ensolarado de 1929, um jovem zoólogo, preocupado em descobrir um tema para sua tese de doutorado, andava pelas dunas da região central da Holanda, em Hulshorst, cobertas por manchas de líquens e musgo. Foi então que reparou nas vespas de cor amarelo-alaranjada, do gênero Philantus, que traziam para seus ninhos, cavados na areia, abelhas capturadas em colméias longínquas. Havia muitas vespas trabalhando, e o jovem zoólogo, Nikolaas Tinbergen, não tardou em verificar que cada uma encontrava de volta o próprio ninho em meio aos outros. Como as vespas conseguiam localizar sem erro o seu ninho? Essa pergunta foi o ponto de partida para a pesquisa de doutorado de Tinbergen, com apenas 32 páginas, uma das mais concisas defendidas na Universidade de Leiden. Assim se iniciava a carreira de um dos mais originais e importantes pesquisadores do comportamento animal, criador, com seu amigo, o zoólogo austríaco Konrad Lorenz (1903-1989), de uma nova área de estudos – a etologia. Foi também junto com Lorenz que Tinbergen ganhou o prêmio Nobel de medicina de 1973.

Como participante do 27o Congresso Internacional de Etologia, realizado em fins de agosto em Tübingen, Alemanha, pude verificar o quanto as idéias de Tinbergen – defendidas com uma modéstia que lhe era típica -- ainda estão vivas. Contrariamente a uma linha de pesquisa dirigida a poucas espécies de animais, estudadas essencialmente no laboratório, Tinbergen trouxe para a área o interesse pelo comportamento animal tal como se manifesta no ambiente natural, e uma estratégia comparativa em que se dava atenção tanto aos aspectos causais como à adaptação do comportamento. O título que Tinbergen escolheu para um de seus livros, Naturalistas curiosos (Curious naturalists), caracteriza muito bem a motivação que embasou a nova abordagem e que deu origem a uma síntese essencial entre os conceitos da ecologia e o estudo do comportamento, hoje conhecida como ecologia comportamental.

As grandes idéias da etologia, geradas na época que antecedeu à Segunda Guerra, não se difundiram muito além de um pequeno círculo, especialmente entre leitores de língua alemã. Não havia, além disso, as facilidades de hoje para o intercâmbio científico nem, evidentemente, a comunicação eletrônica. A guerra, que segundo Tinbergen foi uma catástrofe -- ele e Lorenz passaram anos em campos de prisioneiros -- veio complicar as coisas. Mas rapidamente, passado o conflito, a etologia retomou sua trajetória. Em 1946-1947, Tinbergen foi convidado para dar um curso sobre comportamento animal no Museu Americano de História Natural e na Universidade de Colúmbia, nos Estados Unidos. No ano seguinte, transformou as aulas do curso no livro The Study of Instinct (O estudo do instinto), que teve um primeiro manuscrito em inglês ‘norte-americano’, sob a influência do psicólogo norte-americano Daniel Lehrman (este mais tarde adotou uma posição crítica em relação à noção de instinto, tal como usada pelos etólogos). A versão definitiva, ‘em inglês de Oxford’, foi publicada em 1951. Movido pela convicção de que, se não fosse divulgada no mundo anglo-americano, a etologia nunca conquistaria o espaço merecido, Tinbergen decidiu mudar-se naquele ano para a Grã-Bretanha, onde passou a lecionar no Departamento de Zoologia e Anatomia Comparativa da Universidade de Oxford, obtendo mais tarde a cidadania britânica.

Passados 50 anos da publicação de O estudo do instinto, vale a pena rever sua mensagem e avaliar seu impacto no desenvolvimento da área. Tinbergen julgava que seu livro não tinha tido grande repercussão. Em um de seus textos autobiográficos, escreveu que O estudo do instinto representava uma primeira tentativa de transmitir, de forma equilibrada e abrangente, sua concepção da etologia. Mas acrescentava que essa tentativa logo tinha sido superada, e que o livro talvez merecesse ser relegado às estantes das obras históricas. Achava o título provocativo -- talvez o incomodasse a palavra ‘instinto’ por carregar a conotação de um comportamento rigidamente estruturado e resistente às influências do ambiente. Mas era importante enfatizar, em uma época em que predominavam as teorias do condicionamento, que nem tudo no comportamento é produto de aprendizagem.

Minha releitura do livro indica que Tinbergen não ficou preso à concepção de instinto, criticada pelo psicólogo norte-americano Lehrman, enquanto puro automatismo. Propôs mecanismos através dos quais a experiência passada pudesse ajustar, de maneira fina, o comportamento típico da espécie ao ambiente. No vôo da vespa Philantus de volta ao ninho (e em outros exemplos citados no livro) se manifestam tanto os determinantes genéticos, ‘pré-programados’, quanto a capacidade de registrar na memória e utilizar as informações do contexto imediato. De qualquer modo, O estudo do instinto teve o mérito enorme de apresentar os conceitos etológicos de forma ao mesmo tempo precisa e clara, inserindo-os em um esquema teórico. Alcançou dois objetivos: o de fundamentar esses conceitos mostrando como se aplicavam às observações feitas com várias espécies de animais -- entre eles, a vespa, a borboleta Grayling, a gaivota, o peixinho esgana-gata Gasterosteus aculeatus, animais ‘tinbergenianos’ -- e o de divulgá-los de forma didática. É um feito. Acredito que o livro tenha deixado uma marca -- uma estampagem, para usar o jargão etológico -- na maneira como hoje ensinamos e encaramos os fatos do comportamento animal.


A seletividade do instinto

Tudo começa, na perspectiva etológica que Tinbergen apresenta e quer objetiva, pela descrição minuciosa do comportamento. Tal descrição permite estabelecer ‘etogramas’ (lista de unidades que compõem o repertório de uma dada espécie) e situar as reações dos animais em relação ao hábitat. Um exemplo clássico é o modo como gaivotas cuidam da prole. Não há como compreender esse comportamento sem antes observá-lo nas condições normais de emissão. A que reage o filhote da gaivota quando bica a extremidade do bico materno ou paterno, em demanda de alimento? É possível, se se dispõe de um contingente de alunos interessados (em regime de "escravidão" como dizia, brincando, Tinbergen) passar manhãs inteiras na praia, descrevendo as interações entre indivíduos e realizando experimentos em que vários modelos de papelão que reproduzam a cabeça do adulto são apresentados aos filhotes para verificar o poder que cada um tem de provocar bicadas.

Através de experimentos desse tipo, Tinbergen demonstra a seletividade do instinto: apenas parte dos estímulos presentes (os ‘estímulos signos’) tem poder desencadeador de bicadas: poderia ser a cor do bico, a mancha vermelha em sua ponta, o contraste entre a mancha e o bico etc. Além da seletividade perceptiva, o comportamento-instinto se marca, do lado motor, pela integração de suas unidades motoras. Há muito mais nas atividades típicas da espécie do que simples reflexos ou relações estímulo-e-resposta, "até mesmo atividades simples", escreve Tinbergen, "são de uma natureza mais complexa [do que a do reflexo], pertencem a um nível integrativo mais alto".

É interessante notar o quanto Tinbergen, que valorizava a análise e acreditava que a explicação última para os fatos do comportamento seria fisiológica, adotava uma perspectiva sistêmica, não reducionista: "Tudo no comportamento de um animal está relacionado a quase todo o resto." Ele propunha que a organização dos mecanismos que controlam a ação se compõe de uma ‘hierarquia’ de níveis de integração. À liberação de tendências comportamentais gerais segue a de tendências mais específicas, estas levando a tendências mais específicas ainda e assim por diante, até serem produzidas as unidades mais moleculares do comportamento.

Assim, no caso dos esgana-gatas, o aumento da duração do dia, na primavera, ativa uma motivação reprodutiva geral que leva os peixes machos a procurarem águas rasas onde o aumento de temperatura e estímulos ambientais propiciem-nos a construir o ninho e a reagir defensivamente a peixes estranhos. O tipo de reação aos peixes estranhos dependerá, por sua vez, do comportamento deles: se morderem, haverá mordida de volta; se ameaçarem, haverá ameaça também etc. O tipo de mordida variará de acordo com a postura do oponente, e assim por diante.

Como opera a aprendizagem, na integração do comportamento? Ao escrever O estudo do instinto, Tinbergen, como Lorenz, procurou defender uma visão dicotômica do controle do comportamento instintivo, inspirada nas idéias do cientista norte-americano Wallace Craig (1918-). Atividades típicas da espécie se iniciam pela fase mais lábil do ‘comportamento apetitivo’, como a procura da presa ou do parceiro reprodutivo, fase em que pode atuar a aprendizagem. Surge no final o ‘comportamento consumatório’, rígido e resistente a condicionamentos, como a captura da presa ou a cópula. Tinbergen renunciou mais tarde a essa concepção, propondo que genética e ambiente integram seus efeitos a cada passo do desenvolvimento do indivíduo. Declarou em 1974 ser "uma simplificação abusiva conceber qualquer atividade de um animal adulto como inata".


A adaptação do instinto

O mérito de Tinbergen foi também ter chamado a atenção para a possibilidade e importância de uma análise da adaptação ou análise funcional. Para ele, como para a maioria dos estudiosos modernos do comportamento animal, existe sempre uma razão adaptativa para o comportamento. Mesmo a resposta breve e rara de uma gaivota de cabeça preta quando apanha e joga longe do ninho as cascas de ovo de uma ninhada recente tem significado para a sobrevivência; poderia diminuir, como mostraram as fascinantes pesquisas de Tinbergen e colaboradores, a freqüência de ataques predatórios.

"Se analisarmos um sistema", declarou Tinbergen, "veremos sempre que o animal, que tem de dar conta de todo tipo de pressões ambientais, encontrou uma solução de compromisso muito esperta". Em O estudo do instinto, Tinbergen dedica um capítulo à questão da adaptabilidade do comportamento. É pouco. Hoje, autores como John Alcock gastariam no assunto um manual quase inteiro. Mas o muito de hoje foi preparado pelo pouco de ontem.

Muita coisa aconteceu no campo de estudo do comportamento animal em 50 anos. Se rescrito, O estudo do instinto teria que ser renovado nas ênfases e no conteúdo. Uma versão moderna dedicaria maior espaço para a cognição (Tinbergen tinha restrições quanto à postulação de fenômenos subjetivos na explicação do comportamento animal) e para o comportamento social, teria uma poderosa neurofisiologia a aproveitar como embasamento (a neuroetologia de hoje atende a uma das preocupações teóricas de Tinbergen) e se estruturaria em torno das hipóteses funcionais que a ecologia comportamental pôs na ordem do dia. Permaneceriam as idéias de Tinbergen já integradas na área e, decerto, a curiosidade naturalística que foi sua.

Foi uma pena que Tinbergen não pudesse vir ao Brasil. Em 1973, pouco depois da atribuição do prêmio Nobel, o convidamos a participar, em São Paulo, do Congresso Latino-americano de Psicobiologia. Motivos de saúde o impediram de comparecer. Em seu lugar, veio o etólogo holandês Gerhard Baerends, seu aluno e colaborador, que trouxe relatos interessantíssimos sobre o comportamento das gaivotas, assim como um pouco do jeito e do espírito de Tinbergen.

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